Title | : | Na dobra do dia |
Author | : | |
Rating | : | |
ISBN | : | 853252981X |
ISBN-10 | : | 9788532529817 |
Language | : | Portuguese |
Format Type | : | Paperback |
Number of Pages | : | 232 |
Publication | : | Published January 1, 2015 |
Ao adotar o universo carioca como ponto de partida para sua lente de cronista, retoma um traço um tanto esquecido nos relatos atuais do gênero. Fazendo jus à tradição de João do Rio e Paulo Mendes Campos, Machado de Assis e Rubem Braga, Moutinho persegue as miudezas, as marcas ao rés do chão, a matéria ordinária dos dias — não apenas banal, mas traiçoeira. Cria relatos de lirismo ligeiro e de assombro, mas também registros atentos de costumes e personagens, fissuras na ordem do mundo, ironias ocultas no vaivém de encontros e desencontros, diapasões do cotidiano.
Não à toa, Na dobra do dia é dividido em duas partes — “Pequenos amores da armadilha terrestre” e “As ruas pensam”, frases retiradas de Paulo Mendes Campos e João do Rio, respectivamente. Quando não são as pulsações das ruas, é o espaço doméstico, com suas ciladas, que invade os textos. Os mistérios da casa vazia, o amor desmantelado, a nostalgia no chiado de um long-play. Ecos da memória — a algaravia dos carnavais da infância, a traição na escolha do time de futebol. Às vezes, as crônicas trazem também notícias de alhures. Como a chuva que cai sobre o México, invisível e desconcertante, pondo “um enfeite qualquer na tristeza”. Ou as semelhanças entre quem foi menino durante a ditadura militar, no Brasil e em outros países da América Latina.
Como no texto que dá título ao livro, Moutinho investe no espaço fugidio, na “hora imprecisa”, no instante em que “a cidade é borda”. Traço inequívoco de sua literatura, a melancolia dá o tom dos relatos. Mas também um humor fino e surpreendente, forjado na descontração dos bares e na perspicácia dos sambas antigos, a nos lembrar que chope de verdade é com colarinho e que, sim, há botequins que encerram um universo inteiro. São páginas onde a leveza é só disfarce, a revelar: é nas cenas inusitadas, fiapos quase invisíveis na trama da cidade, que pulsa a matéria densa da literatura.
Na dobra do dia Reviews
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Nos recantos do Rio de Janeiro, entre livros, samba e cerveja, viceja uma cidade que costuma escapar à vista. É verdade que, aos poucos, essa cidade se vai, deixando como resquícios bares que encerram universos inteiros, mas, nas crônicas de Marcelo Moutinho, ela ainda vive em todo o seu esplendor. “Na dobra do dia” (Rocco) é, afinal, o testemunho do cronista diante da passagem do tempo em sua cidade. A boemia carioca, o carnaval, os samba-enredos que são parte da alma da cidade, os subúrbios, a Lapa, essa rainha decadente que só se dá a ver a quem vive nela, tudo isso é objeto não apenas da atenção, mas da exaltação do cronista.
À medida que passa pelas ruas do Rio de Janeiro, interessando-se pelos nomes, pelos tipos e pelas histórias que carregam, Moutinho sente também sobre si o peso do tempo. Toda vez que vai ao subúrbio, por exemplo, a infância lhe dói. Lembra-se do dia de Cosme e Damião em Madureira, lembra-se da trilha sonora que o pai colocava nas viagens Barra/Madureira. Hoje o pai não está mais ali para lhe proteger das freadas da vida, hoje as casas de sua infância já não dizem nada às novas gerações de sua família. Tudo se esfarela até virar grão, imperceptível.
Não estranha, pois, que haja um acento melancólico naquilo que escreve. Há experiências líricas intensas, como a crônica-título, “Casa Vazia”, “Hotel com garagem” e “O homem na areia”. Em seus incidentes domésticos, Moutinho apresenta a gata Mila. Também fala sobre o amor – e a amizade, uma de suas formas. Reverencia seus mestres, como Paulo Mendes Campos e João do Rio, escritores com quem descobriu que há mais pessoas tateando sentidos, perplexas com o abismo que, dia após dia, envolve a vida – esse samba desconjuntado.